sábado, 16 de outubro de 2010

Tatuagem na memória 2

Não me posso esquecer, não me posso esquecer.
Deixo de sentir o meu corpo, sinto apenas a musica, nota por nota como copos para me embriagar. Desaparece o edifício familiar, a rua, a cidade, eu e a noção daquele lugar. Fica apenas aquele som que me veio soltar.
Não me posso esquecer, não me posso esquecer.
Sei porque vim para aqui, foi para me perder. Para encontrar algo dentro de mim, um sítio, uma imagem, talvez uma recordação de tempos em que a esperança estava no altar, prestes a casar com o desejo de afirmar.
Não me posso esquecer, não me posso esquecer.
Um passeio nocturno, de mão dada com a alma gémea. Eu a caminhar lado a lado com a Majestade do meu país, que dada a sua ausência está agora infeliz. Mostrou-me o meu nome pintado na parede, levou-me a uma festa para matar a sede.
Não me posso esquecer, não me posso esquecer.
Regresso a mim. Regressa a cidade, a rua, aquele edifício. Regresso ao meu corpo e a janela mergulha no silêncio docemente como se não me quisesse acordar. Regressa uma brisa menina que me acaricia o rosto, na testa uma pinga pequenina.
Não me posso esquecer, não me posso esquecer.
Sobe o vento, cresce a chuva. Na janela sinto um respirar, uma sombra, uma silhueta turva, uma mão a chamar. Avanço até a porta e calculo o botão da campainha que devo carregar. Carrego. Ninguém atende o meu chamar.
Não me posso esquecer, não me posso esquecer.
Ajeito os meus trajos e volto a espreitar à janela. Não está lá ninguém e sei que não estou a delirar. Resigno-me à sua vontade, volto para a arcada, para do temporal me abrigar. Sento-me no chão, não resisto em me deitar.
Não me posso esquecer, não me posso esquecer.
 Embrulho o meu corpo numa posição fetal. Sinto o frio e a ausência de vontade de me levantar. O peso dos olhos faz-me chorar, lágrimas que se confundem com a chuva pura que está em todo o lugar.
Não me posso esquecer, não me posso esquecer.
Mergulho no sono, afundo-me num sonho. Sinto um corpo nas minhas costas quase a me abraçar. Sinto um dedo dentro de mim e uma mão a quer me esticar. Uma vontade enorme de chorar. Uma preocupação num coração a saltitar.
Não me posso esquecer, não me posso esquecer.
Uma voz que diz: “…é mais forte do que podem julgar.”Diz e eu quero acreditar. Sonho sem imagem, apenas sentidos cegos, cheiros, sons, tacto e paladar. Arroz de pato é estranho, é intruso e no entanto neste sonho é facto.
Não me posso esquecer, não me posso esquecer.
A imagem de um serviço de talheres, banhados a prata que o tempo veio estalar. Não é meu, meu é apenas a cobiça de com ele ficar. Um raio do sol surge para me despertar. Levanto-me do chão duro e na janela fixo o meu olhar.
Não me posso esquecer, não me posso esquecer.
Gotas de água descem das folhas amarelas, castanhas. Verdes eram dantes, nas possas abundantes, pingo a pingo insistem em não secar. Está complicado o meu acordar, o meu corpo está dorido e as minhas pernas tremem, as mãos fedem.
Não me posso esquecer, não me posso esquecer.
Lisboa acordou. As pessoas passam por mim e fingem não me ver. Coço a cabeça e escondo a vergonha, recomeço a minha caminhada um pouco a aqueçer. Sinto fome e vejo um café aberto, ocorre-me a ideia de que é lá que desperto.
Não me posso esquecer, não me posso esquecer.
 Aproximo-me atento ao meu redor. Olho para todos os indivíduos, especialmente quem é consumidor. Uma mulher limpa as pálpebras com as pontas dos dedos, acompanhada por dois homens que parecem segurar os seus medos.
Não me posso esquecer, não me posso esquecer.
Sinto uma confusão dentro de mim, os meus pés outrora dormentes, estão agora dementes. Contrariam a minha primeira vontade. Insistem que precisam marchar, gritam lá de baixo que foram feitos para andar.
Não me posso esquecer, não me posso esquecer.
Contrariado arranco as folhas de uma árvore, deposito nelas a angustia de estar a perder. Desfaço-me delas, com a franca facilidade, como se fossem tudo o que não quero. Inspiro e trauteio a melodia de ontem. O presente tempero.

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