domingo, 10 de outubro de 2010

Tatuagem na memória. 1

Para onde vai tanta chuva. Para onde se dirige? Penso enquanto caminho, com as mão dentro do sobretudo. Bate nas costas com o vento, pingas grossas batem como folhas fantasma, vindas a cobardia.
Não me posso esquecer, não me posso esquecer.
Passam dois carros a meu favor, vejo as matrículas mas não memorizo. São-me familiares. Leio “ritz” escrito a spray the tags way. Deixo-me rir porque sei. Penso quando pedes com o extremo do fervor. Dizes: “fica” e eu fiquei.
Não me posso esquecer, não me posso esquecer.
Passam dois casais em silêncio, passo apressado e desorientado. Não perguntarão, nada, não reparam em mim, talvez seja da minha figura fechada! Também desorientada. Sinto-me mais sem rumo, do que o desconhecido, o medo de ir ao nada.
Não me posso esquecer, não me posso esquecer.
Paro de pensar. Sinto a chuva que investe na minha metade de traz. Vejo oito camiões pesados a passar, carregados de areia. Lembrei-me de uma ideia e sinto que a noite está bem cheia, de água certamente, que no código ninguém me chateia.
Não me posso esquecer, não me posso esquecer.
Paro de andar, mentalizo-me que tenho de escrever. Por enquanto não, a ocasião não deixa e a chuva não quer parar de chover. Alem disso, sinto já as repetições, creio que me faço entender. È aqui que recomeço a pensar.
Não me posso esquecer, não me posso esquecer.
O vento segreda-me num silvo o que quero ouvir, o que preciso e começo a sorrir. Os tascos estão fechados e as discotecas estão demasiado embriagadas para me servir. No balcão existe gente bonita e agradável, mas o preço não me faz sorrir.
Não me posso esquecer, não me posso esquecer.
Passo as mãos da cara molhada, procuro perceber o que está diante do meu caminho. Seguro o colarinho e sacudo o corpo. O vento começa a acalmar e a chuva enfraquece na vertical. Reparo no que o meu rumo me foi dar. Recomeço a caminhar.
Não me posso esquecer, não me posso esquecer.
Aproximo-me devagar de um edifício que me é familiar. Começo a sentir que estou a suar e reparo na única janela que alguém quer iluminar. Seis laços colados nos vidros, paredes forradas de livros. Uma melodia a tocar.
Não me posso esquecer, não me posso esquecer.
O vento pára. A chuva também. A luz na janela apaga, a melodia mantém-se porém. Oiço com mais nitidez, é um violino que sai de um gira-discos, notas que me tocam com nudez. Abrigo-me debaixo duma varanda. A música comanda.
Não me posso esquecer, não me posso esquecer.
Começo a balançar o corpo até começar a dançar, numa dança tímida. Fecho os olhos e sinto a água a escorrer… aquele violino, instrumento que abafa o meu tormento… os meus pés fazem girar o corpo. Gabardina aberta a esvoaçar.

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