domingo, 17 de outubro de 2010

A queima.

O tem que ser tem força, e ninguém trata do que é meu. Veio o dia amanhecer e a tarefa era queimar o mato selvagem que durante o verão, no quintal, vi crescer. Tinha tudo já cortado, amontoado e colocado com cuidado no chão destinado. Já estava seco, pronto para ser queimado, cumprindo as normas, não fosse um erro dar cabo do meu ordenado.
Com a tenaz segurei uma acendalha, acendi um fósforo e peguei-lhe o fogo. Debrucei-me sobre o monte, e com delicadeza poisei-a dentro dos absurdos. Vi as labaredas a lamber os ramos secos, que estalavam por estar a ferver. Amarela e laranja a chama fez-me ver que algumas das ervas não perderam o verde vibrante e no entanto queimavam como entusiasmo de arder. Ignorei e ali fiquei a apreciar o calor. Vigilante, atento, diz no manual que nunca se deve ficar distante.
Levantei-me e senti o mundo a girar com mais violência do que é habitual. “Deve ser do pequeno-almoço fraco… hoje comi mal.” Pensei enquanto recuperava o equilíbrio, no meio de uma serenidade que me agradava. Respirei fundo e dei dois passos a traz, sentei-me no tronco cortado. Fiquei imóvel, com o olhar cansado, no entanto, dentro de mim, pensamentos novos surgiam e fugiam. Ideias bruscas que não me deixavam sossegado. O fogo parecia poesia bailarina, nascida da terra, com músculos soltos e tendões quentes em membros irrequietos que só querem mexer. Senti o cheiro do fumo, doce ácido, levou-me a compreender que não era um lume qualquer.
Vi a mancha cinzenta pelo céu se perder. A confundir-se nas nuvens carregadas, próprias da época, prontas a chover. Olhei para as fachadas dos edifícios e foi neste momento que começou tudo a acontecer.
Um jovem veio à janela com um saxofone que me parecia enorme, com o seu sopro começou a tecer uma melodia forte serena. Do extremo oposto surgiu uma senhora que nunca saia de casa e pôs-se a cantar, como se quisesse acompanhar, o jovem que tocava de olhos fechados, nada o podia incomodar. Aos poucos as janelas, uma por uma, foram-se abrindo. Corpos vindos do interior do betão foram surgindo. Reparei que as pessoas começavam a comunicar, pareciam estar a combinar, o quê não sei, mas pareciam determinados. Falava das janelas uns para os outros e pareciam se corresponder. Uma coisa é certa, estavam alegres, numa alegria rara, rara de acontecer. No telhado do prédio mais baixo surgiram três pessoas. Uma com um bombo, outra com uma tarola e a mais alta com dois pratos de choque. Surgiu outra que seu pôs em linha com os outros, soprou um apito e começaram a batucar. A mulher que cantava, parecia ter sentimentos guardados numa eternidade, aquela voz parecia não ter idade. Ao lado do jovem saxofonista, surgiu uma rapariga que rapidamente compreendi que era trompetista. As janelas não paravam de se abrir, um movimento que estava sempre a se repetir. Olhavam todos uns para os outros, falavam sem eu compreender, até ao momento que vi para crer. Explosões de folhas de papel, rebentavam de dentro para fora dos edifícios. Milhares a descer numa leve e calma queda, a atmosfera rapidamente ficou sem nada para preencher. Folhas de todas as cores, papel de todos os feitios. Os animais pareciam estar a enlouquecer. O galo cantava fora de horas, o coelho corria a traz da galinha, amedrontada, fugia como se tivesse medo de levar uma dentada. O gato dava saltos no ar, parecia que queria a gravidade desafiar. As folhas de todas as cores e feitios aos pouco vinham ao solo poisar, mas não por muito tempo porque aparecia sempre alguém pronto para as apanhar. Quando já não tinham braços voltavam a se esconder dentro dos prédios cheios de gente a festejar, um festejo absurdo que me animava até a minha melhor gargalhada se soltar. Doze janelas, uma dúzia de pessoas afinadas, começaram a fazer coro, pareciam querer acompanhar aquela senhora que nunca saia do seu lugar, tinha estado a guardar uma voz de ouro. De cima de um muro surgiu um trombone, nas escadas dois pares de violoncelos e quatro violinos faziam as cordas vibrar. Uma algazarra louca que parecia não acabar.
As minhas pernas não me deixavam levantar e aquela multidão parecia que em mim não estavam a reparar. Olhei de novo para o fogo e a chama crescia, na vertical vencia. Ficou da minha altura, uma língua quente que subitamente ganhou a forma de gente. Um homem de braços e pernas a correr. Por vezes surgia um rosto fugidio, trazia uma expressão contente, vitoriosa, aquela face de vencedor, um sorriso de vitória, de quem fez frente. Veio do fogo e não era demónio, não era anjo nem gente. Era fogo espectro filho de seres divinos, penso eu, alguém que nunca morreu. Uma visita de pasmar, uma figura que cortou o meu respirar.
Aos poucos as pessoas foram parando, os animais regressando á calma habitual. A chama foi minguando. Aquele frenesim e aquele elemento da natureza, estavam um para o outro como se fossem viajantes que se vão acompanhando.
O saxofonista parou com um beijo na trompetista que o entusiasmou. A senhora escondeu-se com um sorriso na cara que mirava o coro que nunca desafinou, ao mesmo tempo lançaram doze beijos e rapidamente aconteceu o seu recolher. Aos poucos as folhas aterravam, foram sendo recolhidas e já não voltavam a aparecer. As cordas pararam de vibrar, o trombone parecia corar e caio na graça do silêncio. O bombo, a tarola largaram o ritmo, os pratos chocam mais uma vez, fazem o silêncio regressar. O galo desmaiou, a galinha desistia e dormitava com o coelho satisfeito que já ressonava. O gato veio deitar-se no meu colo e ficámos a ver os restos incandescentes do fogo; a apreciar o regresso da noite e o cantar de um grilo que fazia o seu chamamento, calmo e pachorrento.
Veio uma chuva miudinha, fez as brasas soprarem. Levantei-me leve, sorridente, esfomeado porém. Nessa noite a cidade adormeceu cedo.

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